Em 03.10.2023 foi publicada a Lei Federal nº 14.690, conhecida como a legislação do Programa Emergencial de Renegociação de Dívidas de Pessoas Físicas Inadimplentes, ou simplesmente “Desenrola Brasil”. A referida lei estabeleceu normas para facilitação de acesso ao crédito e mitigação de riscos de inadimplemento e de superendividamento de pessoas físicas.
Entre outras medidas, o diploma legal em tela disciplinou o chamado rotativo do cartão de crédito, que é um dos maiores algozes do consumidor endividado. Em suma, o crédito rotativo é ofertado por instituições financeiras quando o cliente não paga o valor total da fatura do cartão de crédito até a data de vencimento, de modo que o saldo residual da dívida é transportado para a fatura do mês subsequente, acrescido de juros, IOF e encargos financeiros.
A respeito do tema, em agosto de 2023, o Presidente do Banco Central do Brasil (“BACEN”), Roberto Campos Neto, afirmou[1] que:
“A gente tem um mercado que tem características muito diferentes no Brasil. A gente tem um parcelado sem juros, que ajuda muito o comércio, que ajuda muito a atividade, mas que tem aumentado muito o número de parcelas, de três para cinco, para sete, para nove, para 11. Hoje, o prazo médio são 13 parcelas. Então, é como se fizessem um financiamento de longo prazo sem juros. A pessoa que toma a decisão de dar os juros não é a mesma que paga pelo risco, isso gera uma assimetria.”
“Os bancos, novos entrantes e varejistas acabaram usando o cartão de crédito como um instrumento de fidelizar o cliente. Então, nós saímos de cento e poucos milhões de cartões de crédito para 215 milhões de cartões de crédito num período de dois anos e meio, isso é uma alta bastante grande”
“O resultante disso foi uma inadimplência no rotativo de 52%. Não tem nenhuma inadimplência, nem parecida, em nenhum outro lugar do mundo, que eu tenha olhado, no cartão de crédito”.
Segundo dados[2] do próprio BACEN, entre 04/12/2023 a 08/12/2023, a taxa média de juros praticados pelo mercado no crédito rotativo foi de incríveis 477,59% a.a. Se a inadimplência média nessa modalidade de crédito é superior a 50%, conforme afirmou Campos Neto, temos o cenário perfeito para o superendividamento do consumidor brasileiro.
As taxas proibitivas praticadas pelo mercado, na prática, significam uma servidão financeira dos consumidores, que, sem melhora salarial equiparada aos juros das operações de crédito (o que seria uma utopia) e desprovidos de educação financeira, acabam emaranhados em uma teia de dívidas impagáveis, que se retroalimentam com o passar do tempo, fazendo com que o cidadão pague quatro, cinco ou até mais vezes o valor da dívida original já no curto prazo (1 a 2 anos).
Trata-se de expediente catalisador de uma mobilidade social reversa, isto é, os juros astronômicos cobrados no rotativo do cartão de crédito fazem o consumidor estagnar financeiramente ou, frequentemente, causam o empobrecimento sistemático de famílias inteiras, que não sabem lidar com finanças pessoais.
Neste contexto, o art. 28 da Lei Federal nº 14.690/2023 disciplinou as taxas de juros e encargos financeiros que podem ser cobrados em operações de crédito rotativo e de parcelamento do saldo devedor de faturas de cartão de crédito:
“Art. 28. Os emissores de cartão de crédito e de outros instrumentos de pagamento pós-pagos utilizados em arranjos abertos ou fechados, como medida de autorregulação, devem submeter à aprovação do Conselho Monetário Nacional, por intermédio do Banco Central do Brasil, de forma fundamentada e com periodicidade anual, limites para as taxas de juros e encargos financeiros cobrados no crédito rotativo e no parcelamento de saldo devedor das faturas de cartões de crédito e de outros instrumentos de pagamento pós-pagos.
§ 1º Se os limites referidos no caput deste artigo não forem aprovados no prazo máximo de 90 (noventa) dias, contado da data da publicação desta Lei, o total cobrado em cada caso a título de juros e encargos financeiros não poderá exceder o valor original da dívida.
§ 2º O limite previsto no § 1º deste artigo também será aplicável aos emissores de cartão de crédito e de outros instrumentos de pagamento pós-pagos que deixarem de aderir à autorregulação de que trata o caput deste artigo.
§ 3º O disposto neste artigo não constitui infração à ordem econômica prevista na Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, e será regulamentado pelo Conselho Monetário Nacional.”
Como se vê, a legislação deixou a cargo do Conselho Monetário Nacional (“CMN”) a definição anual dos limites dos juros e dos encargos financeiros do crédito rotativo das faturas de cartão de crédito.
O CMN[3] é o órgão superior do Sistema Financeiro Nacional e tem a responsabilidade de formular a política da moeda e do crédito, objetivando a estabilidade do real e o desenvolvimento econômico e social do País. Integram o CMN o Ministro do Estado da Fazenda (Fernando Haddad), na condição de Presidente do Conselho; a Ministra de Estado do Planejamento e Orçamento (Simone Tebet); e o Presidente do BACEN (Campos Neto).
Na última reunião mensal do CMN, realizada em 21/12/2023, o órgão não chegou a um consenso acerca dos limites de juros e encargos, de modo que, a partir de 01/01/2024 passará a vigorar o disposto no § 1º do art. 28 da Lei Federal nº 14.690/2023, ou seja, o total de juros e encargos cobrados no rotativo do cartão de crédito não poderá exceder o valor original da dívida.
Desse modo, se o consumidor gastou R$ 100,00 no cartão de crédito e não pagou a fatura, os juros e encargos do rotativo não poderão exceder R$ 100,00, ou seja, a instituição financeira poderá cobrar, no máximo, R$ 200,00, excluindo-se deste teto o valor do Imposto sobre Operações Financeiras (“IOF”).
Naturalmente, se o cliente gastar mais R$ 200,00 no mês seguinte e novamente não pagar a fatura, estes R$ 200,00 entrarão no crédito rotativo e poderão ser cobrados até R$ 400,00 após a aplicação dos juros e encargos financeiros. Em outras palavras, sobre cada nova entrada de valores no crédito rotativo, o banco ou financeira poderá cobrar juros e encargos de até 100% (sem computar o IOF).
Pondere-se que tais regras valerão apenas para dívidas incluídas no rotativo do cartão de crédito a partir de 01.01.2024. Se o consumidor já estava devendo crédito rotativo em dezembro de 2023 ou antes, a instituição financeira poderá cobrar juros e encargos que excedem o teto de 100% da dívida original, mesmo a partir de 2024.
A medida é benéfica para a saúde financeira dos consumidores, ao menos no curto prazo, pois haverá redução substancial dos juros e encargos financeiros que, em média, quase alcançaram a marca dos 500% a.a. em dezembro de 2023.
As instituições financeiras, por sua vez, reformularão os critérios para concessão de crédito, possivelmente diminuindo as quantias disponibilizadas aos consumidores em razão da imposição do teto de 100% dos juros e encargos do rotativo.
Há grandes chances de os lucros corporativos serem impactados negativamente neste momento de adaptação, especialmente em instituições financeiras de pequeno e médio porte, cuja atividade empresarial se concentra na concessão de crédito de risco para pessoas físicas. Grandes bancos, a nosso ver, não terão o balanço tão impactado, pois trabalham com outras linhas de produtos altamente rentáveis.
No longo prazo, todavia, é fundamental que o Governo Federal implemente políticas públicas que promovam a educação financeira dos brasileiros (preferencialmente desde o ensino básico), pois, sem disciplina nos gastos, é certo que num horizonte de 10 anos ou mais, o cenário de superendividamento perdure ou até mesmo piore, mesm’o com a medida paternalista de limitação dos juros e encargos.
Ademais, as instituições financeiras provavelmente criarão novos produtos e linhas de crédito ao consumidor para contornar o teto de 100% que, aliás, valerá apenas para o ano de 2024, podendo ser alterado a partir de 2025, já que o caput do art. 28 da Lei Federal nº 14.690/2023 estabeleceu periodicidade anual para fixação dos limites de juros e encargos.
[1] < https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-08/banco-central-estuda-o-fim-do-credito-rotativo-do-cartao-de-credito > Acesso em 22.12.2023.
[2] < https://www.bcb.gov.br/estatisticas/reporttxjuros?codigoSegmento=1&codigoModalidade=204101 > Acesso em 22.12.2023.
[3] < https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/cmn > Acesso em 22.12.2023.
Advogado (OAB/SP 407.499), sócio proprietário do Fidelis Sociedade Individual de Advocacia (https://fidelisadvocacia.com/), bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), e especialista em Direito Empresarial pela FGV-SP (pós-graduação lato sensu).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Heitor José Fidelis Almeida de. Impactos econômicos da limitação dos juros do rotativo do cartão de crédito a partir de janeiro de 2024. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jan 2024, 19:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /64498/impactos-econmicos-da-limitao-dos-juros-do-rotativo-do-carto-de-crdito-a-partir-de-janeiro-de-2024. Acesso em: 28 dez 2024.
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